A NeoAristocracia na música ou O texto que vai irritar muitas pessoas.
Engraçado este filme “Amadeus”. Me faz pensar que houve uma época na história da humanidade em que os superstars do mundo musical europeu eram os grandes compositores, maestros, solistas de orquestra. Aí eu lembro que o caixão de Beethoven foi seguido em procissão por milhares de pessoas. Que a Alemanha costumava esperar ansiosamente as novas óperas de Wagner. E, mais importante, que a música popular sempre existiu, em paralelo a tudo isso.
Milênios se passaram (mas não muitos), e diversas reformas foram feitas em todos os âmbitos da existência humana. O que se pode encontrar de comum entre essas diversas reformas é a crescente elevação das massas populares através do humanismo, da democracia e da lógica de mercados de massa. Inevitavelmente, a cultura européia (e de suas colônias) passou por um processo de crescente popularização, mas não no sentido de dar maior acessibilidade das artes refinadas para o povo, mas sim de uma crescente discriminação daquilo que era outrora considerado nobre e erudito e da divinização do que é popular e mais simples.
Interessante é observar, porém, como isso se deu muito mais intensamente na música do que nas outras formas de expressão cultural. Um exemplo banal-mas-verdadeiro seria o da pintura: apesar de todo o modernismo, cubismo e outras formas mais simples e ultraindividualistas de expressão, o que atrai mais as pessoas até hoje são as pinturas da época neoclássica e barroca. Agora, assista algum programa de TV que fale sobre cultura moderna (especialmente da MTV) ou então leia alguma revista da moda: o que encontramos é uma celebração da simplificação da música e do afastamento da cultura erudita dos meios de comunicação. Viva a simplicidade medíocre, fora a complexidade nobre. (Antes de continuar, um mea culpa: Existem sim, coisas simples e nobres e belas, aliás, a vida é cheia delas, e complexidade não é sinônimo de nobreza. Mas o que é simples está perigosamente perto de se tornar - vulgar).
Parece-me que isso ocorre justamente porque a música é uma das formas ancestrais de expressão humana que passou pelo mais intenso processo de modernização dos meios. Para pintar, usamos um pouco mais de técnica do que Michelangelo usava, mas para gravar músicas e fazer shows parece um outro mundo se compararmos com a música popular e erudita de antigamente. Isso permitiu, especialmente depois da década de 50, uma industrialização desta arte, e com isso trouxe para ela toda a lógica desenvolvida nos ambientes úmidos das indústrias inglesas do século XIX.
Mas meu objetivo não é estabelecer relações históricas em profundidade ou fazer uma crítica à industria cultural (Para isso leiam Theodore Adorno), e sim falar do fenômeno exposto no título. E é aqui que talvez eu vá irritar algumas pessoas: o populacho musical está presente obviamente em músicas como o funk carioca, por exemplo, que é facilmente atacável, mas e se disser que o meu maior problema é com o “bom e velho Rock n’Roll”?
Isso acontece porque, hoje em dia, o rock tomou o lugar de ouro no panteão de elementos culturais aristocratizantes. A questão é que a importância inovadora do rock chegou a seu ápice com Led Zeppelin e Black Sabbath (e não estranhamente, essas duas bandas passaram por dificuldades de magnitudes semelhantes a que se apresenta a alguém que almeja ser um compositor erudito. Elas realmente lutaram por ideais artísticos e culturais, apesar do abuso de drogas). Depois deles, mal se pode citar atos, dentro do rock, que inovaram estruturas e canalizaram energias de oposição à sociedade moderna. Porém, jovens pseudo-intelectuais enchem a boca para dizer, em oposição a outros tipos de música mais populares (e algumas vezes mais genuínas), que ouvem rock, punk (o mais domesticado, lógico, o punk rock greendayniano e seus discípulos) e, o mais doloroso, (pseudo) metal. Este último, que toca de modo especial o meu coração, nos leva à questão central deste texto.
De uma vez por todas: metal não é uma versão mais pesada do rock. Metal é metal, rock é rock e ponto. Sim, existem bandas de rock n’roll atuais que pegaram emprestado “flairs” e estéticas do metal verdadeiro (sim, eu sei que estou soando como o Detonator do Massacration) e são dessas que eu falei acima. Mas o que diferencia os dois?
Bom, eu poderia aqui falar de modo prolixo de como estrutural e tecnicamente esses estilos são diversos, mas não acho que tenha gabarito o bastante pra falar disso sem soltar uma ou mais besteiras e não quero alienar quem não conhece teoria musical. Então resumo aqui: Metal é o movimento mais puramente neoaristocrático (e não estranhamente, neoclássico e neo-romântico) na música, e provavelmente, nas artes em geral. Isto começou a ocorrer claramente na época do estouro do speed metal, quando a tosqueira necessária do punk hardcore foi sendo elaborada em complexidade nos moldes de bandas como o Led Zeppelin, no tocante à técnica do instrumento, e nos de bandas de progressivo, no tocante à estrutura narrativa e coesa de músicas que poderiam durar consideravelmente mais do que o tempo padrão para o rádio, mantendo a riffagem e o pessimismo e amor ao que há de horrível na vida, pregado pelo Black Sabbath e o The Doors. Essa mistura foi aliada ao comportamento verdadeiramente snob dos músicos e dos fãs que, também, por sua parte, procuraram na música erudita inspiração para compor e se tornaram tão críticos e fechados quanto a nobreza européia apreciadora deste tipo de música, mantendo a comunidade extremamente fechada e avessa a “novidades” (reciclagens de velhas idéias em roupagens novas: a alma do capitalismo de terceira geração – a propaganda).
A verdade é que a busca pelos ideais de nobreza da antiguidade clássica existe em vários pontos da música. Quanto mais complexas em termos de ritmos, melodias, harmonias, mais inescutável se torna a música (e é por isso que as pessoas acostumadas com o rock e o pop acham o metal, o free jazz e a música eletrônica – barulhentas). Estas formas já citadas e outras fazem parte de um só movimento, o romantismo, que nunca morrerá enquanto houver uma sociedade maximizadora dos valores mercantis-populares em detrimento da cultura local, da nobreza das ações e pensamentos, da espiritualidade e do respeito aos ancestrais e à ordem natural. Não é à toa que nestes tipos de música pode-se encontrar em abundância os mesmos temas antimodernos: ocultismo, naturalismo extremo, busca do medievalismo ou dos épicos da antiguidade, busca de uma espiritualidade pagã, virilidade, quebra de padrões rígidos, etc. É na vontade de passar uma experiência que engloba todos os aspectos, sensoriais ou não, da vida humana, de uma forma que só a música poderia fazer, é que Mozart, Bach e Beethoven são aproximados de Iron Maiden, Slayer, Sepultura, Immortal, Emperor, Angra, Stratovarius, Symphony X, Kraftwerk, My Bloody Valentine, Arcade Fire e muitos outros mais: o anseio pela eternidade.